A onda crescente de violência em Euclides da Cunha
pode se transformar em um tsunami de efeitos irreversíveis
Ainda lembro perfeitamente a primeira vez que pisei em solo euclidense. Para quem buscava reviver a experiência de morar em um local sossegado no interior, Euclides da Cunha preenchia todos os pré-requisitos. À época, quase dez anos atrás, uma notícia de homicídio ou qualquer outro ato de violência grave soava como uma piada. E as estatísticas oficiais comprovam isso.
Segundo dados da Secretaria Estadual de Segurança Pública (SSP/BA), entre 2007 e 2008 apenas 09 casos de homicídios foram registrados na cidade. Com a virada da década, a coisa começou a mudar. Somente em 2010, foram 10 mortes, e em 2011 esse número subiu para 13, uma realidade que começou a assustar os moradores.
Nos relatos policiais, quase sempre a justificativa da causa é a mesma: envolvimento com o tráfico de drogas. De fato, uma apuração rápida demonstra que no currículo das vítimas esse tipo de relação é quase regra. Entretanto, o momento alarmante pelo qual a pacata Euclides da Cunha tem passado merece um pouco mais de reflexão.
Embora eu acredite fielmente que o caráter de uma pessoa é moldado durante a sua vida, sobretudo enquanto criança, defendo que o universo das oportunidades interfere substancialmente na construção da trajetória de vida de um ser humano; oportunidades que, por sua vez, estão diretamente condicionadas a alguns fatores, ao meu ver, determinantes.
Comecemos pela educação. Ou melhor dizendo, pela falta dela. Em países desenvolvidos como Estados Unidos e Canadá, o modelo educacional estimula a criança, desde cedo, a empreender, ser dona do próprio negócio, mostrando e provando, inclusive, que há campo para novas empreitadas, espaço para todos. No Brasil, o modelo de educação é direcionado ao sistema patrão-empregado; somos treinados em sala de aula a estarmos aptos a ocupar uma vaga de trabalho, e quase nunca estimulados a estar no lugar de empregador. Essa postura desencadeia três consequências imediatas e prejudiciais ao mercado: novas oportunidades de geração de emprego e renda deixam de ser criadas, aumenta a concorrência pelas vagas existentes e diminui a valorização salarial.
Soma-se a esse cenário o fato de a qualidade do que é ensinado em sala de aula ser, em sua maior parte, inadequado; professores sem habilidade para o exercício da profissão (há muitas exceções, óbvio), consequência do próprio sistema; e estrutura física deteriorada, além de baixa remuneração para quem atua na área. Para retratar o desastre educacional do país, basta dizer que muitos professores não se sairiam bem nas próprias avaliações que desenvolvem para seus alunos, caso não tivessem o conhecimento prévio do assunto e das questões. Então, que formação as crianças e adolescentes estão tendo e levando para a vida?
Há poucos meses, fui assistir a uma apresentação de circo na cidade e uma cena me chamou muito a atenção, além de me deixar profundamente abalado. Em determinado momento do espetáculo, uma espécie de palhaço convidou algumas crianças a subirem ao palco para interagir com a performance, motivadas pela promessa de ganharem ingressos para o dia seguinte. Tudo que os convidados precisavam fazer era tocar algumas partes do próprio corpo à medida que o animador ia ditando. O que era, aparentemente, para ser cômico transformou-se numa tragédia. As crianças foram incapazes de distinguir partes básicas como calcanhar e cotovelo, e de se relacionarem com noções de direção, esquerda e direita. Toda a cena foi regada com doses acentuadas de preconceito, o que deixou as crianças, visivelmente, constrangidas. Muitas delas abandonaram o tablado e uma, em especial, chorou desesperadamente quando conseguiu chegar aos braços da mãe.
Outro fator relevante é o aumento desordenado da taxa de natalidade. Em alguns países, como ocorre na China, o número de filhos por casal é rigorosamente controlado pelo Estado. Até 2015, apenas um filho era permitido. Hoje, o governo chinês tolera duas crianças caso um dos pais seja filho único.
Em 2010, Euclides da Cunha contava com uma população de 56.289 habitantes. Em 2016, segundo dados do IBGE, já somos exatos 61.618, um crescimento de 9,46%, o que corresponde a um crescimento anual de 1,58%, percentual que, embora não assuste, está acima da média nacional, 0,9%, a qual vem diminuindo anualmente.
O número começa a preocupar, no entanto, quando se leva em consideração as condições em que as crianças nascidas estão sendo submetidas a viver. Apenas uma volta rápida pelos bairros de fronteira é suficiente para constatar crianças e adolescentes sendo “educados” pelas ruas, sem o devido cuidado, atenção e responsabilidade dos pais. Nessa esfera, planejamento familiar é matéria desconhecida, um cenário perfeito para ser moldado o destino daqueles que viverão à margem.
Para a psicóloga Dra. Elis Ravena, crianças que crescem em ambientes desfavoráveis podem ter o seu desenvolvimento emocional comprometido. “As experiências sociais podem influenciar diretamente na construção da identidade da criança, a qual absorve e reproduz certos tipos de conhecimentos, valores e comportamentos inadequados”, avalia.
Ela chama a atenção, também, para o exemplo que é dado pelos pais e a importância do acompanhamento junto às crianças. “A criança tende a tê-los como referência, passando a reproduzir seus comportamentos sem nenhum tipo de reflexão. Precisamos ensinar e, principalmente, estimular em nossas crianças a ética, o respeito, o amor pelo próximo, valores fundamentais para a convivência harmoniosa entre os seres humanos”, alerta.
Não se sabe, oficialmente, o que contribuiu para que Euclides da Cunha alcançasse esse trágico patamar de violência letal. Em 2016, o índice bateu recorde: 20 homicídios. E, ao que tudo indica, o número pode ser ainda maior este ano. Tomara que não!
Pelos dados oficiais, entre janeiro e abril de 2017 já foram registrados 07 casos de homicídios na cidade. Se o ritmo se mantiver, teremos um número desastroso de vidas a menos para celebrar no próximo Natal. Por enquanto, vai se criando, paralelo à sensação de horror com o aumento da violência, um sentimento silencioso de “morreu porque estava envolvido”. E se a onda avançar para a praia dos “inocentes”?
No mundo todo há exemplos de países onde a taxa de crimes dolosos (quando há a intenção de matar) é quase zero. Se o Brasil – nosso caso exige esforço geral e não apenas de uma ou duas cidades – quisesse mudar a realidade, podia, ao menos, tentar, de forma séria, reproduzir os modelos de sucesso. É um sonho, mas um primeiro passo precisa ser dado.
No caso específico de Euclides da Cunha, se nada for feito para frear a onda crescente de violência, em breve seremos obrigados a surfar sobre a força esmagadora das águas de um tsunami de efeitos irreversíveis. Só que até mesmo os melhores surfistas uma hora levam um tombo e caem. É bom lembrar!
Josevaldo Campos é jornalista de formação e profissão, amante da publicidade e compositor nas horas vagas.
Josevaldo Campos