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A rebeldia é o principal legado de Lucas da Feira

Contos e Crônicas - 24/10/2017

Sábado houve uma celebração pelos 210 anos de nascimento de Lucas da Feira, lá no Mercado de Arte Popular. Controversa personagem, até hoje provoca acalorados debates na Feira de Santana. Herói ou bandido? Essa costuma ser a dicotomia, que contrapõe aqueles que buscam resgatar a figura histórica com os seus implacáveis detratores. Note-se que Lucas se notabilizou como bandoleiro na primeira metade do século XIX. A ele, são atribuídos inúmeros crimes.

Apesar das intensas discussões, das posições encarniçadas, das defesas apaixonadas, é visível que os posicionamentos sobre Lucas da Feira figuram mais na dimensão mitológica que, propriamente, amparados em fatos históricos. Dessa forma, fica difícil compreendê-lo e interpretá-lo como personagem de uma época e de uma determinada realidade.

Diversas fontes indicam que a personagem nasceu em 18 de outubro de 1807 e foi enforcado em 25 de setembro de 1849. Outras tantas apontam como local de nascimento a fazenda Saco do Limão, aqui nas cercanias da Feira de Santana. A partir daí, boa parte das informações vêm pejadas de juízo de valor, ilações, reprimendas e alguma exaltação.

Atribui-se a Lucas da Feira um espírito rebelde e a exposição a intensos maus tratos na infância escrava. Essas razões o levaram a se tornar bandoleiro, constituir um grupo e promover roubos, saques, assassinatos, estupros e outras estripulias no então imenso território da Feira de Santana. Segundo estimativas, essa vida atribulada se arrastou por inacreditáveis duas décadas, até sua captura.

Feira-Livre

Rollie Poppino, o historiador norte-americano que andou pesquisando a Feira de Santana do século XIX, menciona Lucas da Feira de passagem. Atribui a ele uma onda de crimes e assaltos pelas estradas que afetou, até mesmo, o funcionamento regular da feira-livre à época. Versões do gênero tangenciam a delicada questão da escravidão – e a revolta contra essa condição – privilegiando a dimensão criminal e, sobretudo, patológica da personagem.

Imagina-se que, à época, o tratamento reservado aos escravos não devia ser, exatamente, cordial; e que a revolta contra essa condição era, no mínimo, compreensível. Questionar a escravidão pelas vias institucionais era impossível: àqueles espíritos inconformados restavam os quilombos, o cangaço, a vida bandoleira. Nessas circunstâncias, a fronteira com o crime é muito tênue.

É provável também que muitos crimes atribuídos a Lucas da Feira tenham sido cometidos por terceiros e surgiram ladinos que trataram de lhe atribuir responsabilidade. E aí a fama do escravo rebelde só cresceu. Mas esse raciocínio também já percorre a dimensão da especulação. É melhor, portanto, centrar a análise no contexto.

Legado de Lucas

O contexto mostra que a realidade é mais complexa que o antagonismo entre o “bandido” e o “herói”, comum nas fábulas e na crônica religiosa. É provável que Lucas da Feira tenha cometido várias atrocidades nos seus tempos de bandoleiro, inclusive prejudicando gente que não estava no circuito dos senhores de escravos; sua insubordinação, porém, foi contra uma sociedade escravista, extremamente cruel e tão violenta quanto hipócrita.

O evento no MAP relembrando seu nascimento tem o mérito de manter vivo – embora longe de almejar quaisquer conclusões – o debate sobre a personagem e sobre seu contexto. Lá houve declamação, cantiga e muita valorização da cultura nordestina. Muitos feirenses compareceram ao espaço para se divertir no sábado.

Pelas mesas, aqui ou ali, estalaram discussões sobre Lucas da Feira e seu papel. Evidentemente, tudo temperado pelas paixões que cercam o mito. O escravo insurreto foi morto há quase 170 anos. Sua atitude de se insurgir contra a ordem escravocrata, no entanto, segue viva e é o que mobiliza esses debates acalorados até os dias atuais.

A rebeldia que, lá adiante, se traduziu em incontáveis estripulias talvez seja o principal legado de Lucas da Feira.

André Pomponet*
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