Último trimestre de 1993. O calor na Feira de Santana estava insuportável. Os paralelepípedos que calçavam boa parte da cidade tremeluziam sob o sol escaldante. Na primavera daquele ano, eventuais chuvas torrenciais eram sucedidas por manhãs e tardes incandescentes. Mesmo assim, uma multidão aglomerava-se no Joia da Princesa – era tanta gente que, praticamente, dava-se a volta no estádio, numa fila infindável – suportando o calor infernal daquela tarde abrasadora.
Nenhuma partida do Fluminense de Feira ou apresentação de artista famoso atraía tantos feirenses. Aliás, o público era majoritariamente feminino e, na quase totalidade, composto por gente muito pobre. Muitas crianças compunham a plateia, aporrinhando-se com a espera interminável.
Aquelas presenças se deviam a uma circunstância inusitada: o governo federal – Itamar Franco era o presidente da República – resolveu distribuir cestas básicas para parte dos brasileiros pobres naqueles dias que antecediam o Natal. Era uma concessão inesperada num país de inflação vertiginosa e pobreza endêmica. Embora sem vínculo direto, a iniciativa vinha no vácuo da campanha “Natal sem Fome” promovida pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, já falecido.
Na rua Voluntários da Pátria – a famosa descida do Sobradinho – mulheres se aglomeravam no ponto de ônibus, acomodando seus produtos em sacolas robustas. Algumas não continham a surpresa diante da inesperada – e rara – oferta do governo. Os pacotes pesavam. Os produtos, porém, eram ordinários.
Evolução
Naqueles idos, a fome e a miséria no Brasil assombravam. A inflação galopante corroía o parco dinheiro dos mais pobres, legando-lhes uma rotina de indescritíveis agruras. No ano seguinte, em 1994, veio o Plano Real que refreou a corrosão sob a dimensão monetária. Aconteceu, então, o primeiro grande impacto na redução da pobreza.
Nos anos seguintes, foram sendo articuladas as políticas de transferência de renda que tornaram o Brasil referência no tema até alguns anos atrás. Políticas sociais deixaram de ser dádiva dos coronéis e se tornaram direitos dos brasileiros mais necessitados. A gente famélica dos períodos de estiagem se reduziu dramaticamente, mesmo com a grande seca dos últimos anos.
Pois bem: desde o ano passado, metodicamente, essas políticas vem sendo desmontadas por Michel Temer (PMDB-SP) e sua trupe. Política assistencial se tornou sinônimo de crime de lesa-pátria, sobretudo depois que, prioritariamente, o governo federal se tornou instrumento para a concessão de mimos tributários e indecentes isenções para sonegadores e assemelhados.
Ração
O desmanche das políticas assistenciais no Brasil, no entanto, vinha precisando de um símbolo. A lenta – e silenciosa – desidratação do Bolsa Família, por exemplo, tem apelo quantitativo, mas falta-lhe densidade simbólica; o cerco a beneficiários de seguros ou segurados da Previdência se dilui na rotina burocrática.
Mas aí surge a “ração” para alimentar pobre, proposta pelo prefeito de São Paulo, João Dória, paradigmático pré-candidato à presidência da República. Impossível obter tradução mais fiel dos tempos atuais. Alimentos às vésperas de vencer serão processados para resultar num composto que vai encher a barriga dos desafortunados pobres paulistanos. Imagino que, para as empresas beneméritas, serão concedidos incentivos fiscais.
Lá adiante, a medida pode ganhar amplitude, contemplando todos os desamparados miseráveis brasileiros. Sem dúvida, regrediremos à era pré-Itamar Franco: naquela tarde incandescente de um quarto de século atrás, pelo menos se distribuía comida – de má qualidade, vá lá –, mas comida; tantos anos depois, pretende-se alimentar o pobre com um granulado que, caso se adicione água, pode se tornar uma espécie de lavagem, conforme se diz popularmente no Nordeste.
André Pomponet