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Nosso barco, nossa vida

Cinema - 20/02/2014

Autenticidade e Essencialidade

Em plena Segunda Guerra Mundial, David Lean e Noel Coward co-dirigem Nosso Barco, Nossa Vida (In Which We Serve, Grã-Bretanha, 1942), também intitulado Nosso Barco, Nossa Alma, inserido num esquema de esforço de guerra para levantar o ânimo dos britânicos, então sofrendo bombardeios em Londres, enfrentando os alemães no ar e no mar e preparando-se para confrontá-los, em largas proporções, em terra.

Coward (1899-1973) tem pouca ou nenhuma relevância para o cinema, já que, como diretor, só fez esse filme. Sua atividade mais importante é como autor teatral, na área da comédia sofisticada, com peças como Virtude Fácil (Easy Virtue, 1925), Vidas Privadas (Private Lives, 1930) e Minha Querida Gilda ou Gilda - Um Projeto de Vida (Design for Living, 1932). Já David Lean (1908-1991), que estreia na direção justamente nesse filme, desenvolve significativa carreira de cineasta seguro e competente, conquanto não autoral e destituído de significado estético. O melhor de sua obra, no entanto, é sua primeira fase, de 1942 a meados da década seguinte.

Depois disso, envereda pelas grandes produções baseadas em fartos recursos financeiros e técnicos, mas, sem qualquer valor artístico, a exemplo dos anódinos A Ponte do Rio Kwai (The Bridge on the River Kwai, Grã-Bretanha, 1957), Lawrence da Arábia (Lawrence of Arabia, Grã-Bretanha, 1962) e Doutor Jivago (Doctor Zhivago, EE.UU., 1965), simples filmes de entretenimento.

Nosso Barco, Nossa Vida, conquanto obra de estreia de ambos os diretores, é vigoroso e, notadamente, substancioso, não obstante convencional na forma e no conteúdo. Todavia, essa limitação não impede sua autenticidade e a verdade ínsita na trama e nos relacionamentos interpessoais das personagens. Se não há abordagem vertical da natureza humana, o que o convencionalismo não permite e a simples competência cinematográfica é insuficiente, ocorre genuína e medular construção do ethos e do pathos do povo britânico, ou seja, de suas características morfológicas e sentimentais.

Esses atributos (autenticidade e essencialidade) permeiam e compõem todo o filme e abrangem tanto os oficiais da marinha britânica quanto seus familiares.

No breve tempo de aproximadamente duas horas tem-se extrato de situação emergencial e sua repercussão no seio familiar e no relacionamento do soldado em perigo com seus parentes, em que a angústia destes evidencia-se plenamente, não obstante o intuito patriótico do empreendimento fílmico.

O sofrimento e o sacrifício dos entes próximos que ficam são até maiores que os dos soldados empenhados em combate, embora aqueles também não estivessem livres, à época, de envolvimento direto na guerra, sob os bombardeios alemães de Londres, pelo que um marinheiro no navio recebe a notícia da morte de seus familiares ao invés de ser o contrário.

O filme distribui-se equilibradamente mediante constantes retrospectos entre cenas transcorridas no mar e em batalhas e partes desenvolvidas no recesso dos lares dos combatentes numa economia de meios e de tempo verdadeiramente exemplar. Os cineastas focalizam apenas situações e diálogos significativos o suficiente para revelar a dramaticidade das reações e da condição humana em conjuntura adversa.

As guerras e as grandes epidemias são momentos traumáticos que deixam marcas profundas em suas vítimas sobreviventes, diretas ou indiretas, tantas e tão grandes que impossíveis de serem concebidas e vivenciadas por pessoas que não sofreram seus efeitos ou que com elas não conviveram de uma maneira ou de outra.

Nosso Barco, Nossa Vida mostra tudo isso com pertinência e, notadamente, dignidade. É, nesse sentido, modelar.

Ressalta-se, ainda, no filme, como manifestação da condição humana, o amor dos marinheiros por seu navio, análogo ao do maquinista ferroviário à locomotiva, como demonstrado em A General (The General, EE.UU., 1927), de Buster Keaton. Neste último, chega-se a afirmar que o protagonista possui dois amores: a namorada e a locomotiva “A General”. Em Nosso Barco, Nossa Vida (o título é sugestivo), o barco é o grande rival das esposas dos marinheiros, conforme afirma uma delas. 

(do livro A Segunda Guerra no Cinema.

Instituto Triangulino de Cultura, 2005)

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Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba, editor da revista internacional de poesia Dimensão de 1980 a 2000 e autor de livros de literatura, cinema, história do Brasil e regional.

Guido Bilharinho

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