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O Cinema de Gláuber Rocha - Terra em Transe: Política e Poesia

Cinema - 07/12/2012

Guido Bilharinho

 Fenômeno recorrente é o artista dar a lume no início da carreira a alguma obra-prima. Sua responsabilidade daí em diante é grande, pesando-lhe muitas vezes como um fardo. Isso não ocorre quando o autor ou cineasta vai pouco a pouco galgando os degraus da qualidade, a exemplo, entre outros, de Machado de Assis, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa no romance brasileiro ou Humberto Mauro no cinema.

Todavia, para inúmeros outros, a obra-prima inicial ou surgida logo nos princípios da carreira mais funciona como estigma do que como estímulo, já que posteriormente é necessário (ou todos esperam e até exigem) algo no mínimo equivalente.

Por isso, não devem ter sido fáceis os caminhos de Mário Peixoto (que após Limite, de 1930, aos vinte e dois anos, nada mais fez), de Eisenstein (cujo segundo filme é O Encouraçado Potemkin, de 1925), de Orson Welles, estreando com Cidadão Kane, de 1941, ou Norman Mailer, iniciando sua carreira literária com o romance Os Nus e os Mortos (1948).

Igualar-se ou superar-se a si próprio quando se atinge tão alto nível é tarefa mais difícil do que a elaboração dessas obras.

Com Gláuber Rocha ocorre o mesmo fenômeno. Logo seu segundo filme, Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) torna-se inexcedível. E aí? Fazer o quê? Claro, continuar, porque o borbulhar (conforme designação de Castro Alves) ou estuar do gênio normalmente é impetuoso e irrefreável. Mas, o comprometimento e o peso continuam.

Assim, pouco depois do golpe militar de 1º de abril de 1964, Gláuber realiza Terra em Transe (1967).

Nele, desvia-se o cineasta de sua ardente preocupação com a saga (e a sina) nordestina para expor drama geral do país.

A pretensão (e a onipresente responsabilidade) de realizar obra consistente o leva a enfrentar a tragédia dos países subdesenvolvidos, nos quais as carências populares avultam na proporção da rapacidade das classes dominantes, nacionais e estrangeiras.

São amplas e abrangentes tais carências, estando sempre presentes e reivindicantes, porque são imensas, inatendidas, não solucionadas.

Gláuber reúne e lida com tais elementos no filme, aduzindo o papel que intelectuais de esquerda desempenham em tal conjuntura.

Na realidade, o cerne ou o núcleo do filme é esse desempenho dilematicamente vivido pelo protagonista, jornalista e poeta.

A estruturação fílmica, no entanto, padece de esquematismo. A figura do protagonista não se resolve com autenticidade. A ação flui bastante intelectualizada, revelando a cada passo os andaimes que lhe serviram de apoio. São atos, gestos, monólogos e diálogos literários, alguns belíssimos, como quando a secretária (Glauce Rocha) do governador (José Lewgoy), diz para o protagonista que “um homem não pode se dividir assim. A política e a poesia são demais para um só homem”, ou quando o governador afirma que “eu recuei várias vezes, adiando problemas do presente para pensar no futuro. Mas, se eu transfiro o presente para o futuro encontrarei apenas um futuro acumulado de maiores tragédias. Por isso é necessário enfrentar agora os inimigos”.

Contudo, de tão elaborada, maior se torna a impressão de artificialidade da contextualização empreendida pelo cineasta, já de si, desde a sequência inicial, forçadamente construída.

A maneira de se relacionarem as personagens, excetuada a ocorrente entre a secretária e o protagonista, balizada pelo amor, é, sempre, impositiva, determinada de fora para dentro e não surgida e processada com espontaneidade e naturalidade.

A imperiosa necessidade de não incidir em convencionalismos e banalidades impõe ao cineasta procurar e montar cenas insólitas e verdadeiramente espasmódicas. Assim, a extrema artificialidade das intervenções eleitorais do candidato Diaz e a cena final, em que o protagonista de personagem transforma-se em figura de outdoor quando a intenção é outra, muito diversa.

Contudo, o filme possui predicados. Não poucos nem irrisórios. O maior deles é de evitar a mesmice do kitsh e do trivial.

A beleza da imagem e a criatividade e elaboração das angulações e enquadramentos de cenas percorrem toda a película, salientado-se como seu maior atributo, não correspondido, como se viu, no conteúdo temático e na articulação convivencial das personagens.

Por sua vez, as cenas das festinhas dos políticos são das melhores do gênero no cinema ou, no mínimo, no cinema brasileiro.

Enfim e em suma, um grande filme não realizado, mas, cujos estilhaços sobreviverão pela garra de sua composição e força de sua impulsão. Se não era o desejado, o esperado e nem o suficiente, pelo menos é, e sempre, instigante, polêmico e exuberante como a inteligência, a concepção e a visão do autor.

 

(do livro Seis Cineastas Brasileiros editado pelo Instituto Triangulino de Cultura em 2012-www.institutotriangulino.wordpress.com)

 

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Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba/Brasil e editor da revista internacional de poesia Dimensão de 1980 a 2000, sendo ainda autor de livros de literatura, cinema e história regional e nacional.

(Publicação autorizada pelo autor)

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