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Pola Oloixarac no caderno de anotações

Literatura - 13/02/2011

A sugestão de convidar a argentina Pola Oloixarac para a Flip veio de seu editor brasileiro, Thales Guaracy, da Saraiva. Confesso que nunca tinha ouvido falar dela. Ou pensava que nunca tinha ouvido.  Para justificar a ignorância (que, como se verá a seguir, não era total), vale a pena falar um pouco de como vão surgindo os nomes da Flip.

Quando fui convidado para ser diretor de programação, pensei em vários escritores, com base em minhas leituras e preferências. Mas um critério importante, embora não exclusivo, é convidar autores que já tenham sido ou estejam para ser publicados no Brasil - o que torna mais rica a interação do público, que pode ler em português a obra do convidado. Daí a troca de informações com os editores, para saber o que planejam lançar. Surgem desse diálogo novas ideias de nomes e a lista inicial vai sendo modificada com o anúncio da publicação da obra de um escritor em que não havia pensado, mas cuja presença se faz mais forte pela iminência do lançamento.

Mas quando o autor que os editores sugerem é desconhecido, a única maneira de preencher a lacuna bibliográfica é ler os livros e a recepção crítica, além de buscar referências. A leitura de As Teorias Selvagens, obra de estreia de Pola Oloixarac, é dessas experiências que por si só justificam o trabalho da curadoria da Flip: um romance do intelecto (bem na tradição da prosa argentina), mas de um intelecto satírico, com teorias mirabolantes e personagens monomaníacas - destas que lidam com conceitos que podem revelar o segredo do mundo nos desvãos de Buenos Aires.  Mas, no fundo, o livro soa como uma antropologia irônica da vida acadêmica bonaerense (não por acaso, uma das personagens é uma antropóloga que assedia um velho professor). O romance funciona como uma espécie de leitura a contrapelo do cerebralismo da prosa argentina, além de uma paródia das estéreis pretensões intelectuais e das ilusões ideológicas da esquerda.

Tudo isso se depreende de As Teorias Selvagens, mas não dá para ignorar que a leitura também vinha precedida de algumas credenciais: eu sabia que Pola Oloixarac tinha sido incluída numa antologia da prestigiosa revista Granta que destacou, na edição do inverno de 2010, os "Melhores Jovens Romancistas de Língua Espanhola" (a mesma seleção, aliás, incluía outro argentino, Andrés Neuman, que também estará na Flip). Além disso, a escritora fora saudada por ninguém menos do que Ricardo Piglia como "grande acontecimento da nova narrativa argentina".

Até aí, nada demais, a leitura de As Teorias Selvagens e minhas pesquisas sobre Pola Oloixarac me convenceram de que ela deveria estar na Flip e, formalizado o convite, ela aceitou vir a Paraty. Semanas depois, porém, tive uma surpresa meio borgeana, que conto a seguir.

Em novembro do ano passado, fui a Olinda para cobrir a Fliporto pelo Entrelinhas (programa da TV Cultura do qual sou editor) e assisti à palestra de Piglia, que deveria entrevistar em seguida. O autor de Respiração Artificial falou sobre "O escritor como crítico" e, numa espécie de mise-en-abîme, fez sua fala a partir de uma conferência de 1947 em que o escritor polonês Witold Gombrowicz, que vivera na Argentina, transformava seu castelhano insuficiente num trunfo, numa defesa da carência de linguagem como maneira de expressar conteúdos incomunicáveis.

A idéia básica de Gombrowicz, retomada por Piglia, é a de que a linguagem se cristaliza em ornamentos e filigranas que ocultam novas possibilidades expressivas, de que há um "escândalo" no fato de que "não temos uma língua para expressar nossa ignorância" (conforme frase dos Diários de Gombrowicz citada por Piglia). A partir daí, Piglia menciona uma série de escritores que, a exemplo de Gombrowicz, procuraram escapar daquilo que está congelado no idioma reproduzido pelos círculos sociais que dominam a norma culta da língua. Com sua prodigiosa erudição, Piglia menciona desde Joyce e Pound até Hemingway e Osman Lins, para terminar fazendo um elogio generoso a uma nova escritora argentina que, na opinião dele, conseguira escapar da "inflação de estilo" das formas ou fórmulas literárias cristalizadas.

Nas anotações apressadas feitas durante a conferência de Piglia, não consegui entender direito o nome complicado da escritora, mas anotei o título de seu único romance e prometi para mim mesmo pesquisar essa autora recomendada por um dos maiores intelectuais contemporâneos.

Só reli essas anotações depois de ter conversado com Thales Guaracy sobre Pola Oloixarac e de convidá-la para a Flip, percebendo então que o título do romance da tal escritora argentina citada por Piglia, e anotado com destaque em meu caderno de trabalho, era justamente As Teorias Selvagens!

Como disse, a descoberta teve algo de borgeano: a constatação de que o encontro com a literatura de Pola Oloixarac cumpria desígnios ocultos em meu caderno de anotações, como uma fatalidade ou presciência. Mas como não tenho qualquer propensão cabalística, prefiro pensar mais prosaicamente (e não sem algum constrangimento) que, se tivesse prestado mais atenção na conferência de Piglia ou feito as sinapses mais elementares, não teria passado pelo vexame de não ter identificado, na escritora proposta por Thales, a autora de As Teorias Selvagens ­- que, não tenho dúvida, será um dos destaques da Flip de 2011.

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Manuel da Costa Pinto é diretor de programação Flip

Manuel da Costa Pinto
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