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Eduardo Kruschewsky

A mulher do Silva

18/09/2013

Ele tinha a consciência de que não podia ficar a se lamentar. Afinal, casara porque quisera, não fora obrigado. Sabia que a noiva era uma completa toupeira, mas o amor é cego e não deixa que as pessoas possam distinguir o que é melhor para si. Resultado: era obrigado a passar os maiores vexames.

Ouvir mal era o forte dela. O Silva pretendia fazer carreira na empresa, eficiente executivo que era, mas perdeu as esperanças no dia em que levou a mulher a uma recepção e a apresentou ao superintendente da multinacional onde trabalhava:

- Doutor Sarmento, quero lhe apresentar minha esposa, a Dulce...

O educado senhor pegou a mão que se estendia, beijou-a de leve e disse:

- Prazer, minha senhora...

- O prazer é todo meu, Doutor Sarnento! Silva fala muito bem do senhor...

Silva, coitado, quase teve um enfarte! Gaguejou uma desculpa, saiu de fininho e trotou de volta para casa com a cavalgadura que escolhera como esposa. O pior é que passou a ser vítima de gozações. Até o superintendente (que fora chamado de “Doutor Sarnento”) sempre que o encontrava, inquiria com ar de mofa:

- E aí, como vai a sua ”sábia” mulher?

Suportava tudo, sem demonstrar, rindo amarelo. Por vezes, chegava a pensar que a criação da “Ofélia”, esposa do “Fernandinho”,  personagem  num programa humorístico da TV possivelmente era inspirada nela, na Dulce, mas lembrou que a “Ofélia” já existia há muito, era só uma infeliz coincidência...

Num domingo, enquanto Dulce, com a cabeça cheia de bobs via o programa de Silvio Santos, trabalhou duro em casa aprontando um relatório que o Doutor Sarmento levaria para São Paulo, para a reunião de diretoria. Caprichou na confecção e, por volta das 15 horas, concluiu. Precisava levar a documentação na casa do chefe. Justificou à mulher, mas esta pareceu não importância, pois nem desviou os olhos da TV, hipnotizada. Ele tirou o carro da garagem e saiu depressa.

Já na casa do superintendente, foi convidado a tomar um uísque, mas recusou educadamente com receio de, na volta, ser pego por uma blitz policial. No momento em que se despedia, desejando boa viagem, a chuva caiu, de repente. Saiu da mansão debaixo de um temporal.

Faltando pouco menos de três quarteirões para sua casa, o carro entrou numa imensa poça e estancou. Ficou insistindo em ligar a ignição até que sentiu que a bateria descarregava. Ficou ali parado no meio da rua, sem nenhuma alma viva. Já escurecia quando constatou que não iria a lugar nenhum com o automóvel e que também não podia deixá-lo ali, parado num lugar perigoso. Parecia que a chuva não passaria tão cedo, alagando as ruas. Resignado, empurrou o veículo para junto do meio-fio, trancou as portas e tomou o caminho de casa. No meio de percurso, passou um caminhão em disparada que atirou água, dando-lhe um banho que o deixou molhado até os ossos.

Chegou em casa, morto de raiva e frio. Tocou a sirene, bateu na porta e nada... De dentro da residência vinha o som altíssimo da televisão, parecendo que Dulce queria superar o barulho dos raios e trovões. Gritou, deu a volta na casa, bateu nas portas dos fundos e nada... Até que lembrou do celular. Ligou o aparelho, protegendo-o com as mãos. Já estava à beira de um ataque de nervos, chutando as paredes, quando a mulher atendeu. Aos berros, impaciente, pediu que ela abrisse a porta. Dulce, então, apareceu com a cabeça cheia daqueles bobs imensos. A “inteligente” mulher, na sua proverbial “inocência”, colocou as mãos nos quadris e perguntou a um possesso Silva:

- Uê... E tá chovendo?!

Aí, o Silva perdeu a paciência de vez: dentro em riste, encarou-a com raiva e disparou:

- Não, sua anta, foi o céu que derreteu...

A mulher nem deu importância até porque não entendeu o que o marido dissera. Apenas resmungou: “- O Céu derreteu... Nossa, tá falando besteira!”  Já esquecida do episódio, correu para a frente da TV pois estava na hora do quadro “Qual é a Musica?” que ela não perdia por nada deste mundo...

Eduardo Kruschewsky