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Eduardo Kruschewsky

O homem da cruz

31/03/2013

Às vésperas da Semana Santa, o dono do circo, considerando que estava na hora de começar os ensaios do Auto da Paixão de Cristo, convocou os atores.

Na terça-feira, às vésperas da estreia, o loiro trapezista que fazia o papel do Cristo caiu doente de catapora. Foi um Deus nos acuda, pois pela 1ª. vez, não seria encenada a Paixão! Mas, a primeira dama do circo, a mulher do Josias, apresentou a solução do problema:

- Ou, Josias, tu já reparou que aquele“mata-cachorro”, o Gustavão, tem os olhos azuis? E, pensando bem, até que o sujeito num é feio... Com uma boa maquiagem, a gente transforma ele num bom Jesus Cristinho...

Procurado pelo patrão, o “mata-cachorro” aceitou de pronto o convite cansado que estava de fazer papel secundário, pois em 10 anos de circo só arrumara e desarrumara picadeiros. Quando o resto do elenco soube da troca, o Zeferino, companheiro de quarto do Gustavão e personagem encarregado de beijar os pés do Cristo na cruz, protestou:

-“Seu” Josias, o senhor me desculpe! Mas com aquele“cabra porco” eu num trabalho! O desgraçado tem um chulé tão retado que quando tira o sapato não tem quem fique perto. E eu ainda vou ter de beijar aqueles pés?!... Aonde!!! Que nojo!

- Olha aqui, Zeferino! Artista tem que fazer de tudo por amor à arte. Se o senhor não quiser, não tem problema. Pegue seus panos de bunda e ganhe o mundo! – fuzilou Josias.

Sem saída, Zeferino aceitou desde que não houvesse ensaio, pois só beijaria aquela nojeira no palco. A mulher de Josias, penalizada, o aconselhou a procurar a farmácia para comprar uma solução de álcool com cânfora, santo remédio para disfarçar qualquer odor. Era fácil: na hora do beija pés, ele despejaria, disfarçadamente, o conteúdo do frasco entre os dedos do homem na cruz e, com certeza, o “bodum” desapareceria. Sentindo-se aliviado, Zeferino nem titubeou, procurando o farmacêutico e comprando o “remédio milagroso”.

Na noite da primeira apresentação, o circo estava lotado, A plateia, num silêncio respeitoso, não despregava os olhos do picadeiro. Alguns choravam, outros ficavam com um nó na garganta enquanto os atores davam um verdadeiro show de interpretação.

Até que chegou a hora da cena da crucificação e o momento do beija-pé. Tenso e solene, Zeferino aproximou-se da cruz. Enjoado, com vontade de vomitar, mal respirava, sentindo o odor nauseabundo do chulé. Sem que ninguém pudesse perceber, tirou o frasco da algibeira, derramando o líquido naqueles pés brancos e mal cheirosos...

Ouviu-se um urro de dor e o “crucificado”, esquecendo-se que estava no meio de uma peça tão importante, pulou da cruz. Desesperado, Gustavão arrancou a lança de um dos centuriões e partiu na direção de Zeferino, batendo com o instrumento em sua cabeça. Foi ridículo: A Paixão de Cristo transformou-se numa comédia pastelão, com o "Cristo" correndo, raivoso, atrás do apóstolo, o fraldão que lhe cobria “as partes”caindo, enquanto gritava: “- Minhas frieiras!... Ai, minhas frieiras... Desgraçado, se eu te pegar, eu te mato,“seu” filho de uma arrombada! Miserável! F.d.p!! “– acabando, assim, o belo espetáculo religioso.

Eduardo Kruschewsky