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André Pomponet

A Feira de Santana é uma cidade mestiça

04/08/2011

Lá por volta de meados do século XVI, quando os portugueses começaram a se aventurar pelos sertões baianos, dando início aos movimentos que resultaram no povoamento dos vastos territórios de Goiás e do Piauí, a Feira de Santana era uma terra indígena. O motivo era óbvio: aqui pelos arredores viviam tribos que se beneficiavam das incontáveis fontes de recursos hídricos, escassas sertão afora. Pressionados pela implacável lógica mercantilista, os indígenas tiveram que dividir o território com o homem branco que avançava criando gado e plantando cana.

Movido pela sede de riqueza, o branco avançou, consolidou imensos canaviais no entorno da Baía de Todos os Santos e reservou pro gado as terras do chamado Grande Recôncavo, incluindo aí a Feira de Santana e seus olhos d’água. Nessa imersão pelos sertões, deixou atrás de si modestos núcleos de povoamento que deram origem às cidades atuais.

No rastro do avanço econômico do branco, o negro começou a ser importado da África. Empregavam-no como cativo nos canaviais, fazendo serviços domésticos, eventualmente vaquejando gado pela caatinga. Sedentário, o negro temperou como nenhum povo a cultura do Recôncavo, traduzindo-a em manifestações vivas e pulsantes.

O índio arredio que se restringiu às franjas da expansão mercantil e o negro cativo que amparou sobre seus ombros a pujança da Coroa Portuguesa se incorporaram ao povoamento encalistrado que os brancos pobres promoveram na Feira de Santana e no seu entorno. Constituíram parte da civilização do “Ciclo do Couro”, objeto de tantas controvérsias historiográficas.

 

Miscigenação

 

Todavia, somente na primeira década do século XXI essa identidade miscigenada começa a firmar raízes mais profundas no imaginário do feirense. É que no Censo 2010 somente 107 mil das 556 mil almas contabilizadas no município declararam-se brancas. Outras 113 mil declararam-se pretas, conforme os dados divulgados pelo IBGE no site da instituição.

A Feira de Santana é uma cidade mulata, miscigenada: 283,6 mil pessoas declararam-se pardas. Em outras palavras, mais de 50% dos feirenses enxergam-se, identitariamente, como fruto dessa miscigenação. São, portanto, resultado dessa mistura de sangues que durou tantos séculos para ser afirmada.

Em 2000, os brasileiros começaram a se reconhecer como negros ou pardos de forma mais acentuada. Essa tendência se aprofundou ao longo da década, conforme sinalizam os dados do Censo. Embora sempre velada, vem caindo em desuso a crença de que a pele branca é sinônimo de status.

 

Futuro

 

Constatar essas transformações vai muito além do valor simbólico que o fato carrega. Significa que estamos caminhando para a construção de uma identidade própria, mestiça, miscigenada. E que estamos esquecendo, aos poucos, a herança aristocrática e escravocrata que, por mais de um século, nos impediu de enxergar o que nós somos.

Durante muito tempo o negro e o pardo figuravam apenas nas róseas propagandas oficiais que vendiam o Carnaval, a mulata e o futebol pros gringos de olhos claros. No dia-a-dia, a alegada cordialidade brasileira servia como eficiente recurso retórico para negar a discriminação racial e o preconceito.

Hoje, aos poucos, negros e pardos vão se afirmando na ainda profundamente desigual sociedade brasileira. Tímida, essa afirmação se vislumbra em detalhes sutis mas muito significativos, como a afirmação da cor da pele no questionário elaborado pelo pesquisador do IBGE...

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André Pomponet é jornalista e economista

 

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