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André Pomponet

Pandemia, cloroquina e leite condensado

01/02/2021

 – ... está morrendo muito idoso com a Covid-19...

É bom. Assim abre lugar pros mais jovens. Renova...

O diálogo surreal ocorreu num boteco na Zona Sul paulistana. Foi num final de tarde de verão, sob uma luz tristíssima, cinzenta. Na orla do céu, o clarão dos relâmpagos anunciava uma trovoada que não chegou. Na rua, os faróis dos automóveis feriam a semiobscuridade do lusco-fusco.

O primeiro interlocutor era idoso – escassos fios alvos emolduravam a cabeça calva – e esvaziava uma garrafa de cerveja. Provavelmente a saideira: o outro, jovem, empilhava mesas, apressado em sua tarefa. Lá, dentro, uma tabuleta indicava os pratos-feitos servidos no botequim. Um cheiro denso de gordura impregnava o ambiente, irradiava-se para a calçada.

Será que a frase cruel era só para afugentar o cliente retardatário? Impossível saber. Mas o desprezo pela vida, no Brasil, só surpreende os mais desatentos. Talvez o sujeito absorvido por aquela tarefa mesquinha, sem futuro – deve embolsar um salário irrisório – julgue que, matando os mais velhos, sobre mais dinheiro para os mais jovens. Ou, quem sabe, almeje só uma vingança sórdida, gratuita, já que vive uma vida sem expectativas.

O mais desconcertante é que muita gente não despreza só a vida dos outros. Afinal, o que pensa quem se entope de cloroquina e sai por aí, sem máscara e sem receio das aglomerações? Devem atribuir pouco valor à própria existência. A cena é muito comum na capital paulista. Lá, muitos se acotovelam, desassombrados, em bares e festas. Contrariando o clichê habitual, não são só os pobres com seus paredões periféricos, mas também a classe média alta com suas festinhas privê.

Aqui na Feira de Santana, pelo jeito, também não faltam destemidos. Será que também se entopem de cloroquina e saem por aí julgando-se invulneráveis? Pode ser. Alguns logradouros da cidade oferecem fartas amostras da fauna. É o caso da Rua de Aurora e adjacências, com seu intenso comércio de autopeças e acessórios. Por ali, poucos usam máscaras. Será que o afã de fazer dinheiro os distrai? Ou julgam a pandemia modismo? São duas explicações plausíveis.

Não é difícil traçar o perfil dos mais recalcitrantes. Muita gente jovem arrisca-se, indiferente à Covid-19. Mas boa parte é de meia-idade, com baixa instrução e ocupada em funções precárias. Trabalham sem máscara, mas também conversam, aguardam clientes ou se deslocam sem maiores cuidados.

No Centro de Abastecimento não é diferente. Feirantes e consumidores arriscam-se como se não houvesse amanhã. Até o perfil é similar. Imagino que, pouco escolarizada, essa gente enfrenta dificuldades para entender o que é um vírus e as formas de transmissão. Para eles, é tudo misterioso, enigmático. Daí a desconfiança que – não raro – é terreno fértil para as mais insanas teorias conspiratórias.

O desalentador é que o cenário vai se arrastar por muito tempo ainda. Negacionista, o governo da morte não investiu em vacinas e a imunização da população, ao que tudo indica, vai prosseguir a conta-gotas. Isso se a nova cepa oriunda do Amazonas não ampliar a desgraça, o que muitos estudiosos já cogitam.

O fato é que 2021 vai ser mais um longo e angustiante ano para o brasileiro que preza pela própria vida e se cuida. Os demais flertam com a morte. E os acólitos de Jair Bolsonaro, o “mito”? Ah, esses permanecem em êxtase, deleitando-se num mar de leite condensado...  

André Pomponet