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André Pomponet

O enigma no trem em Porto Alegre

14/12/2020

O rapaz de cabelos e olhos claros entrou e sentou bem defronte a mim. O trem estava vazio – era metade de uma manhã cinzenta de fim de inverno e o sol e as nuvens alternavam-se no céu – e, ali na Estação do Mercado, havia uma quietude profanada por poucos passageiros apressados. Lá de fora – distantes – chegavam sons distorcidos, indefiníveis. Mas no vagão prevalecia um silêncio tênue, que uma tosse persistente, passos abafados ou o incessante vasculhar de sacolas fragmentavam. Então, depois do aviso sonoro, as portas se fecharam e o trem avançou em direção a Novo Hamburgo, na Região Metropolitana de Porto Alegre.

Entretive-me tentando enxergar o Guaíba – eriçado com o vento daquele fim de inverno e seus múltiplos tons, ora cor de aço, ora acobreados –meio encoberto pela vegetação e pelas construções cinzentas. À medida que as estações foram se sucedendo – Rodoviária, São Pedro, Farrapos – começou a subir mais gente. Subiam também os ambulantes que ofereciam suas bugigangas.

Do lado oposto ao Guaíba vê-se o centro de Porto Alegre num extenso, mas suave aclive, com suas construções solenes, sisudas, de cores neutras. Depois da Estação Aeroporto a paisagem vai assumindo uma feição desinteressante, típica das grandes metrópoles. Viadutos, vias expressas, fábricas, galpões comerciais ociosos – malconservados – vão se sucedendo, encardidos pela fumaça que o vento nem sempre dispersa.

Há também muita pobreza, ostensiva, a alguns metros das linhas férreas. Crianças esfarrapadas brincando no chão úmido, sujeitos ociosos com agasalhos surrados, mulheres lavando roupa, imersas nas tarefas domésticas. Com músculos retesados, alguns desgraçados conduziam monumentais volumes de material reciclável – papelão, latas, hastes metálicas – para defender alguns trocados.

A paisagem repetitiva, monótona, cinzenta, desatava a atenção. Então entretive-me examinando os passageiros. Gente modesta, que se dedicava às suas tarefas corriqueiras. Só então notei que o rapaz mencionado no começo do texto tentava concentrar-se na leitura de um livro. Não foi difícil ler o título: “O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota”. O autor é o autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho, guru da trupe que ocupa Brasília.

Bem vestido, tinha jeito de estudante. Conduzia uma mochila de grife, que acomodava no colo. Interrompia a leitura com os solavancos do vagão, com o incessante sobe-e-desce de passageiros, com os pregões dos ambulantes que suplicavam a atenção dos passageiros. Ou seja: quase não lia. Mas examinava furtivamente as pessoas ao redor. Não era um olhar discreto, mas um exame amedrontado. Havia naqueles incessantes golpes de olhos um receio de ser flagrado, de ser pilhado observando.

Boa parte dos que se aventuram vendendo aquelas quinquilharias – aparelhos para descascar verdura, carregador de celular, fones de ouvido – são negros e labutam com valises que abrigam a mercadoria. Naquele horário moviam-se tranquilos, pois os passageiros eram raros. O rapaz media-os de soslaio, com um olhar esquisito. Ódio? Não se via aquela centelha característica. Temor? Não havia hesitação. O que havia – parecia – era um imenso pasmo. Como quem se depara com extraterrestres.

Não conheço – nem pretendo conhecer – o conteúdo do livro, mas enveredei por algumas especulações, enquanto não findavam os 42 quilômetros daquela viagem. Notei que o rapaz estava na metade da leitura. Será que o pasmo se devia a essa condição intermediária? Não era mais idiota, porque decifrava o livro, mas não concluíra leitura e a metamorfose e, portanto, ainda devia ser meio idiota. Será que idiotas pela metade exibem olhar aparvalhado, perdido, feições estupefatas?

Lá adiante – imagino que no município de Sapucaia do Sul, mas a memória é traiçoeira – ele desceu. Daí para a frente as estações se sucediam – São Leopoldo, Rio dos Sinos, Santo Afonso e, finalmente, Novo Hamburgo ficaram na lembrança –, com a regularidade dos trens que sacolejam, rangem, levando gente. O enigma do sujeito de olhar esquisito perseguia-me, mesmo vendo o luminoso Rio dos Sinos e a bela silhueta de São Leopoldo. Há um estado de idiotice que se desfaz com a leitura do livro, como uma revelação, um transe religioso? Não encontrei resposta.

Em Novo Hamburgo até acompanhei uma celebração católica, ao meio-dia, na bonita Catedral da cidade. Um padre avermelhado, muito branco, pregava com voz mansa. Mesmo assim, saí da igreja sob o frio suave daquele começo de tarde sem as respostas para o tormentoso enigma...

André Pomponet