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André Pomponet

É São João, apesar da pandemia

23/06/2020

O inverno começou com chuva aqui na Feira de Santana. O sol pouco apareceu desde sábado e, quando o fez, estava sempre cercado de nuvens. O costumeiro tem sido as nuvens plúmbeas e cor de aço rolando pelo céu da cidade. Sob elas, uma luz pálida, cinematográfica. Às vezes – sobretudo à noite – a garoa se desprende, encobrindo a cidade com uma cortina prateada. Sob as sombras, a chuva que a luz avermelhada dos postes reluz se acumula em poças miúdas sobre o calçamento luzidio.

Nos intervalos da chuva, as nuvens avermelhadas correm por detrás das torres metálicas do centro da cidade com suas lâmpadas vermelhas, tristonhas, que piscam, melancólicas. Só o estrépito e o colorido dos fogos, esporádicos, espantam um pouco a monotonia que paira, pesada, noite afora. É nesses momentos que se resgata a lembrança de que o São João se aproxima, mesmo com a pandemia e suas apreensões e incertezas.

Apesar das recomendações médicas contrárias, tudo indica que, amanhã (23), haverá o milho, o amendoim e o licor junto às fogueiras acesas. Pelas ruas, vi lenha sobre calçadas, as escassas árvores mutiladas. Apesar das profundas tristezas desses tempos – crises política, econômica e de saúde pública entrelaçando-se – risos, vozes e gritos ressoarão em muitas ruas feirenses. Afinal, é muito difícil manter as pessoas em casa durante tanto tempo.

Sobretudo porque, no Nordeste, todo mundo sempre tem grandes lembranças das festas juninas. Quem não foi feliz nessa época? As recordações imediatas são, sempre, da infância distante, das ingênuas cerimônias da queima de fogos, dos forrós antigos, inesperada invocação de tempos bons. Há também as mesas fartas, a cordialidade nem sempre tão habitual e o compartilhamento dos quitutes.

Em 2020 a natureza foi particularmente pródiga com o sertanejo. É que chove com regularidade desde janeiro e, a partir de março, as precipitações ocorreram na medida exata para garantir fartura já agora, no São João. Quem planta esfrega as mãos, ansioso, como Fabiano, a personagem de “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, num dos capítulos mais memoráveis do romance.

Há, claro, os impiedosos solavancos da economia – milhões de brasileiros perderam o emprego desde o começo do horror, em março – e os malfeitos da república de Rio das Pedras, que começam a borbulhar, estarrecedores. Mas, quem plantou e colheu, conta com essa compensação. Quem consome também, porque pode comprar com preços mais acessíveis durante o inverno.

Sim, apesar do Covid-19, é São João e não dá para permanecer indiferente à data. Claro que toda a cautela é necessária porque a doença permanece aí, à espreita, e a crença de que “o pior já passou” é infundada. 

Mas, mesmo assim, é bom desejar um Feliz São João!

André Pomponet