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André Pomponet

A crônica da Micareta que não aconteceu

27/04/2020

É noite de domingo. E, lá fora, quase tudo é silêncio. Só que, às vezes, ecoa uma voz, uma buzina, o ronco possante de uma moto. Nuvens avermelhadas insinuam chuva. Essa época é de chuva na Feira de Santana. Na Presidente Dutra os raros automóveis avançam, ferindo a meia-luz melancólica com seus faróis. Os transeuntes são raros e mergulham nas sombras. Tudo lembra os domingos comuns, com a população em casa, entretida com a tevê e o celular, aguardando a manhã de segunda-feira.

Não fosse a pandemia do novo coronavírus, a Presidente Dutra deveria estar efervescendo. Luzes multicoloridas, os sons dos trios e dos camarotes animados e, pulsante, a multidão em festa. Nos diversos ambientes da folia, beijos cinematográficos. Naqueles frenéticos cruzamentos de avenidas, gangues de jovens trocando socos sobre o asfalto pegajoso.

Procissões de trabalhadores acorreriam para aquelas cercanias durante quatro dias. A faina de transportar caixas de isopor, quebrar gelo, empilhar junto com a cerveja, apregoar a promoção, entregar a mercadoria, receber o pagamento, devolver o troco. Naquelas barracas decoradas com luzes e cores, foliões impacientes para experimentar drinques exóticos, muito populares.

Não faltariam os felizardos com promessas de novas paixões. Nem os desconsolados decididos a afogar no álcool sua frustração. A algazarra dos encontros ocasionais de amigos. A expressão de poucos-amigos dos militares perfilados. A transmissão ao vivo pelo rádio, pela tevê, pelas novas mídias que surgem todo dia. As músicas que eletrificam a multidão extasiada.

E os políticos? Os quatro dias são de estágio para a campanha. Os mais tímidos – e os que trafegam na faixa da elite – circulam só pelos camarotes, entre sorrisos embalados a uísque. Os mais intrépidos circulam no meio do povão, são reconhecidos, cumprimentam, ouvem queixas, embriagadas declarações de apoio. Depois as fotos vão reluzir nos ambientes virtuais ou nessas exposições que acontecem todos os anos.

Só que a Micareta foi adiada – com absoluta sensatez – e o que resta, na crônica, são projeções, devaneios sobre a festa que não houve. Projeções coalhadas de reminiscências que teimam na memória. Lá fora tudo é silêncio. Só que o som dos trios, os DJ nos camarotes, os gritos de quem celebra, ri, festeja ou de quem mesmo na festa tenta entabular papo sério reverberam, mesclam-se às imagens projetadas do que não aconteceu.

É triste ver a Feira de Santana sem a sua Micareta? É. Mas pior é viver a festa e viver as dores de ver gente sofrendo, agonizando, morrendo nas filas das unidades de saúde no meio da pandemia descontrolada. Essas são imagens que ninguém quer ver. Então é melhor ficar com aquelas da festa que não aconteceu, mas que, lá adiante, será retomada com o autêntico espírito festivo do feirense...


André Pomponet